Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 terminaram no passado dia 11 de agosto e observámos, ao longo de duas intensas semanas, muitas discussões, vitórias e derrotas, tanto a nível desportivo como político e, em particular, no que toca aos direitos humanos. Os temas trazidos merecem a nossa maior atenção pois espelham alguns dos maiores desafios que a comunidade LGBTI+ tem de enfrentar, no desporto e na sociedade.
Sobre a Cerimónia de Abertura e a participação de artistas queer
A primeira grande discussão aconteceu logo a 26 de julho, na Cerimónia de Abertura. Diferente do habitual, a cerimónia foi disruptora, inclusiva e uma montra para a diversidade da cultura que se cria em França. Nas atenções que recebeu do mundo inteiro, a cerimónia de Paris trouxe ao seu gigante palco drag queens e artistas queer num quadro de celebração, moda e dança.
Vozes conservadoras levantaram-se de imediato contra a presença de artistas queer, vista como insultuosa e um atentado a ditos valores católicos, mostrando-nos mais uma vez como a ala mais conservadora e extrema da direita tenta impor uma ideologia moralista de perseguição e de bullying contra todas as pessoas que não se encaixam no seu ideal.
Perante este tipo de discurso de ódio, incontrolável e impune nas redes sociais, Nicky Doll, uma das drag queens participantes e das mais celebradas em França, decidiu avançar para tribunal contra um comentador que insultou o grupo de artistas.
Campeã olímpica Imane Khelif foi vítima de uma campanha de bullying sem precedentes
Também a atleta pugilista – e agora campeã olímpica – de origem argelina Imane Khelif irá levar a tribunal várias pessoas, entre as quais a autora J.K. Rowling e o bilionário Elon Musk, numa queixa-crime por “atos de ciberassédio agravado”. Ambas as personalidades têm um historial de desrespeito, ataques e desinformação, especialmente contra pessoas trans. Importa lembrar que Khelif, assim como a sua colega da modalidade Lin Yu-ting, foi alvo de uma campanha de desinformação e de bullying, tendo estado no centro de uma pseudo-polémica relativa ao seu género, com especulações oriundas de entidades ligadas a Vladimir Putin, presidente russo que baniu o movimento LGBTI+.
E não se afirmando Khelif como mulher trans, o que está na origem desta perseguição é a transfobia e o modelo patriarcal branco, hetero e cisnormativo que continua a querer impor um ideal de corpo feminino, dominando e controlando assim os corpos das mulheres em toda a sua diversidade.
A questão da participação de pessoas trans no desporto de alta competição é um tema que tem servido, essencialmente, para causar o pânico moral da população, instrumentalizando-as para benefícios políticos. As pessoas trans são, mais uma vez, a desculpa para discurso de ódio e tentativa de ativação de políticas que as colocam em risco.
Recorde-se ainda que Imane Khelif é originária da Argélia, um país que criminaliza as pessoas LGBTI+ e toda esta polémica pode colocar a sua própria existência em risco.
Piche, a drag queen de origens argelina e cigana que participou na cerimónia olímpica, é exemplo disso mesmo, tendo sido expulsa de casa pelo pai quando tinha apenas 13 anos por ser gay.
Estas histórias e vivências são exemplo da perpetuação do discurso de ódio e da LGBTIfobia, inclusive dentro do seio das próprias famílias. No meio do assédio à escala global, importa não esquecer que tanto Doll, como Khelif e Piche são, primeiro que tudo, pessoas, merecem respeito, dignidade e admiração por terem superado e se terem empoderado no meio da adversidade. São campeãs de pleno direito.
2024 trouxe, por fim, a igualdade de género na participação olímpica e número recorde de atletas LGBTI+
É importante também evidenciar as conquistas destes Jogos Olímpicos, a começar por ter sido alcançada pela primeira vez a igualdade de género em termos de participantes, um passo importante para uma maior inclusão no desporto de alta competição.
No campo das conquistas, este ano voltou a ser batido o recorde da maior participação de atletas orgulhosamente LGBTI+. Foram 199 atletas que puderam competir exibindo todas as suas cores. Aumentaram assim também o número de medalhas conquistadas por atletas LGBTI+, num total de 42 medalhas olímpicas: 15 de ouro, 13 de prata e 14 de bronze. Tendo em conta as modalidades de grupo, foram distribuídas um total de 65 medalhas a atletas LGBTI+ em Paris.
No meio de todas estas medalhas, algumas tiveram um impacto simbólico de destaque. Por exemplo, a pugilista camaronesa e refugiada Cindy Ngamba fez história nestes Jogos Olímpicos ao conquistar uma medalha de bronze. Ngamba, de 25 anos, mudou-se para o Reino Unido com 11 anos, onde conseguiu o estatuto de refugiada depois de se assumir lésbica em 2021. A sua orientação sexual poderia valer-lhe a pena de prisão nos Camarões, onde a homossexualidade é crime.
As conquistas não se concretizaram apenas em medalhas, também culminaram em orgulhosos beijos como o que a judoca campeã Alice Bellandi trocou com a namorada Jasmine Martin, ou ainda o beijo de conforto que Justin deu ao alpinista Campbell Harrison após falhar a qualificação para a final. Queremos amor de múltiplos propósitos, amor na vitória e na derrota, amor sempre.
E entre as mensagens de atletas também há que destacar a da velocista afegã Kimia Yousofi, cujo principal objetivo não era ganhar uma medalha, era passar a mensagem: “Educação. Desporto. Os nossos direitos”, referindo-se ao regime taliban e aos direitos das mulheres no Afeganistão. Lembramos que, segundo relatório das Nações Unidas, o regime taliban transformou o Afeganistão no país mais repressivo do mundo para as mulheres.
Os Jogos Olímpicos como espelho de um direito básico e essencial: a prática desportiva
Neste balanço, aguardando ainda os Jogos Paralímpicos que começam já dia 28 de agosto, concluímos que o trabalho para uma inclusão mais justa de todas as pessoas no desporto é crucial, até porque falamos de um direito básico e essencial, a prática desportiva. No que toca ao desporto de alta competição, entendemos a importância de critérios para o acesso às provas desportivas, mas importa que estes sejam baseados em evidência científica, sem viéses de teor transfóbico, racista ou qualquer outro preconceito. Importa também que este tipo de discussão não faça crescer o discurso de ódio, o bullying e coloque em perigo real, no fundo, todas as mulheres e pessoas que não se encaixem perfeitamente num dado padrão e independentemente da sua identidade.
Fomentar uma discussão informada e sem alimentar movimentos que, historicamente, estão contra a diversidade e a inclusão é fundamental para uma vitória comum e partilhada, porque “citius, altius, fortius” (“mais rápido, mais alto, mais forte”, o lema olímpico) também rima com direitos humanos!