Notícia

Dia da Memória Trans

dia da memoria trans

Porque a sociedade nos deve a vida

Hoje, 20 de Novembro, não celebramos. 

Hoje, 20 de Novembro, lembramo-nos e tomamos consciência. 

Lembramo-nos por todas as pessoas trans, não-binárias e de género diverso às quais foram tiradas as vidas, vidas essas que apenas por existirem desapareceram. Vidas essas tiradas pela transfobia social, estrutural, simbólica… Vidas essas que muitas vezes não constam dos relatórios anuais de criminalidade, porque o ódio que as mata não é reconhecido e porque são vítimas de homicídio social — vítimas da irresponsabilidade alargada que as encurrala, exclui e, não poucas vezes, as força a tirar a sua própria vida. Tomamos consciência porque nós (toda a população) somos responsáveis. Porque esvaziamos e desvalorizamos a transfobia, porque normalizamos a violência, não refletindo, criticando ou contestando o sistema. 

Tomamos consciência porque fazemos parte de um mundo, tal como o faziam estas pessoas que perderam a vida em nome do ódio, em nome da invisibilidade, em nome do isolamento, em nome da perda de esperança nesta realidade.

Lembramo-nos e tomamos consciência, mas isto não é suficiente. 

Num ano em que o número de homicídios registados cresceu, não chega a lembrança ou a consciência. 

É preciso ação, movimento, solidariedade e sororidade.

Não, a lembrança e a consciência não chegam. 

Estas pessoas mereciam mais, muito mais. Mereciam uma vida digna, mereciam condições de vivência sólidas, mereciam uma rede de suporte. 

E esta violência atinge particularmente mulheres trans, pessoas trans-femininas, trabalhadoras do sexo, pessoas migrantes e racializadas, precárias e periféricas. 

Não, a lembrança e a consciência não chegam.

É necessário redefinir a margem e centrarmo-nos na ação colectiva. Uma ação que vá além do debate, académico e não académico, mas que tem de ter resposta no terreno, nas vivências e nas vidas individuais e coletivas. 

O reconhecimento dos nossos, e principalmente dos vossos, privilégios não é uma opção, é a nossa e a vossa responsabilidade. 

Urge reconhecer que a perpetuação da transfobia é parte integrante do sistema cis-normativo em que vivemos, é parte do capitalismo, do colonialismo, do racismo, da xenofobia, do capacitismo, do classismo, e de muitas outras violências. Só entendendo que as camadas que nos protegem e/ou oprimem são muitas e variadas é que  é possível instigar e implementar uma verdadeira revolução social.

A escassez de políticas públicas continua a deixar-nos à margem, continua a ignorar as necessidades particulares da nossa comunidade. Continua a invisibilizar-nos, a patologizar-nos e a apagar-nos da nossa própria existência. Continuamente a viver na precariedade, na insegurança, no medo e no isolamento, a violência destrói-nos a cada instante. E destrói-nos cada vez mais.

Não, a lembrança e a consciência não chegam.

Os nossos corpos continuam a não ser bem vindos. Os nossos corpos continuam a poder apenas existir conformes, binários e respeitando as regras que tão bem sustentam este sistema. Um sistema que usa as nossas lutas para seu próprio benefício, criando capital social e criando capital económico através das fragilidades que a sociedade nos impõe. Através do medo de perder a casa, o emprego, a rede de cuidados. Um sistema que continua a absorver as nossas existências através de mecanismos e tecnologias de género, usando e abusando do poder e do privilégio da medicina.

A falta de acesso a um sistema de saúde digno, a falta de acesso a cuidados trans específicos e não específicos alimentam a diferença entre classes — dando oportunidades a quem tem valor económico para ter acesso à saúde e negando-as sistematicamente a quem não o tem. A falta de acesso a um sistema educativo digno atira-nos para a inexistência, para o bullying, para o isolamento e para a fraca escolaridade. A falta de acesso a um sistema de emprego digno atira-nos para a precariedade e para a pobreza. A falta de acesso a um sistema de segurança digno atira-nos para a permanente insegurança, para a desconfiança e para o medo. 

Não, a lembrança e a consciência não chegam.

Contra um discurso anti Direitos Humanos, populista e de extrema-direita conservador, é cada vez mais necessário procurar pontes, procurar alianças e criar contra narrativas positivas, desmascarando o ódio alicerçado numa suposta liberdade de expressão. É urgente combater estas forças e manipulações, não amplificando o seu discurso, mas desmontando-o estrategicamente e recorrendo a informação factual, fidedigna e verificada.

Para uma sociedade mais justa, este dia é-nos dirigido, é-vos dirigido. Por uma sociedade livre de transfobia e de qualquer outra forma de violência que atinge pessoas de grupos vulnerabilizados pela sociedade. Por uma sociedade em segurança.

Porque para além da lembrança e da consciência, a sociedade nos deve a vida.